Fomos à Marcha LGBT de Lisboa tentar perceber se Portugal já saiu do armário
Todas as fotos por Bruno Lisita

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Identidade

Fomos à Marcha LGBT de Lisboa tentar perceber se Portugal já saiu do armário

As opiniões são unânimes: a situação é melhor, as leis são melhores, mas a sociedade ainda tem um longo caminho a percorrer.

"Saímos à rua em Lisboa pela 17ª vez para marchar com cada vez mais orgulho em transcender o género. As pessoas lésbicas, gays, bissexuais e trans, conhecem bem a violência desse sistema de regras e de papéis rígidos, um sistema de binarismos, proibições e punições que nos limita e que nos quer dizer quem somos, o que somos, como nos devemos expressar, ou com quem e como nos devemos relacionar. Saímos à rua para mostrar que recusamos a repressão da diversidade de género e que vamos continuar a transcender a opressiva norma binária, porque celebramos todas as nossas diferenças!".

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Estas palavras estão expressas no Manifesto da Marcha do Orgulho LGBT , que percorreu as ruas da capital no sábado, 18 de Junho, e dizem bem dos desafios que a comunidade ainda enfrenta. 2016, século XXI, num país de brandos costumes e bonitas fachadas, é certo que as coisas não são como eram há 20 anos quando a ILGA, principal impulsionadora da Marcha, foi fundada. É certo que hoje em dia até todos têm um amigo que é, todos sabem que o primo da vizinha gosta de gajos, que a vizinha da prima joga na outra equipa e que o Zé António agora é a Débora.

Todos sabem e parece que todos aceitam. Sem complexos, sem julgamentos, sem opressão. Somos todos super inclusivos e sem preconceitos. Somos todos espectacularmente modernos e de cabeça arejada. Seremos?

A pergunta não tem resposta simples. E, se continuarmos a ler o Manifesto - já para não falar que há cerca de uma semana aconteceu o que aconteceu em Orlando, nos Estados Unidos da América -, as dúvidas adensam-se: "Saímos à rua para recusar todas as violências que os papéis de género continuam a impor: os crimes de ódio que são cometidos contra nós e que continuam a acontecer em silêncio, o bullying nas escolas, mas também em casa, ou no local de trabalho, os suicídios de quem sofre por se afirmar, ou por não se poder afirmar. Acabar com toda a violência da discriminação só é possível transformando a sociedade, para o que são fundamentais a intervenção política, a educação sexual, a educação para a cidadania, a sensibilização e formação para a diversidade alargadas".

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Se calhar, e apesar de tudo, o caminho para a verdadeira inclusão ainda tem muito para se trilhar. Se calhar, Portugal ainda não saiu verdadeiramente do armário. Tem a porta aberta e volta e meia mete um pé de fora, mas continua lá, no quarto, a reprimir. Fomos à Marcha LGBTQ lisboeta para percebermos junto da comunidade em que ponto estamos afinal.

NOÉMIA, 22

VICE: Consideras Portugal um País verdadeiramente inclusivo?

Noémia: Acho que Portugal quer parecer inclusivo, mas continua a ser tudo muito à base do "desde que ninguém saiba tudo bem" e isso, por si só, cria um ambiente muito tenso, um silêncio, como se fosse o "elefante cor-de-rosa dentro da sala", como se costuma dizer. Julgo que é difícil que esta situação desapareça de vez, mas, ainda assim, estamos muito à frente do que certamente estavam as gerações anteriores à minha. É pena que ainda haja muitos jovens que não saibam muito bem o que está a acontecer e que se sintam ainda incomodados. Se calhar mais por ignorância, do que propriamente por um preconceito forte. Embora esse preconceito ainda exista.

Este tipo de eventos activistas ajuda a que as pessoas fora da comunidade tenham mais informação sobre essa mesma comunidade?

Sim, mas por vezes a informação não passa tão bem, como deveria e a população fora da comunidade acaba por ver só estas "bolhas" de activismo e não percebe o que está por trás. Era importante que houvesse mais gente fora da comunidade a participar e, claro, desde que viessem com a atitude certa e pudessem ser uma espécie de ponte entre todos.

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Passaram poucos dias do massacre em Orlando. Os acontecimentos deixaram-te com algum tipo de receio?

A mim, em particular, afectou-em bastante e muita gente com quem tenho falado nos últimos dias sente o mesmo. Foi como se nos apercebêssemos que aquele sentimento de falsa segurança que sentimos diariamente era efectivamente falso. Quando pensávamos que as coisas estavam melhores, de repente acontece isto e percebemos que é algo pessoal. Há um grande sentimento de "podia ter sido eu", ou "o próximo sou eu", ou "podia ter sido algum dos meus amigos, ou familiares". Eu, inclusive, tenho amigos em Orlando…felizmente nenhum foi afectado… É algo que, se calhar ninguém da minha geração alguma vez tinha sentido desta forma tão intensa. Foi um grande golpe. E há uma grande preocupação de que possa aparecer alguém inspirado por aquilo e queira fazer o mesmo. É um medo que agora está na cabeça das pessoas. Abalou a comunidade, sem dúvida.

LUCAS, 19

VICE: Consideras Portugal um País verdadeiramente inclusivo?

Lucas: A resposta é complicada. Mesmo numa cidade como Lisboa, consigo ver grandes diferenças. podemos encontrar espaços que são extremamente inclusivos onde ninguém nos olha de lado e somos respeitados como qualquer outra pessoas, como também temos exactamente o oposto. Há locais onde as pessoas nos julgam por sermos, gay, lésbicas, trans, ou bi, ou o que seja.

É claro que se tivermos em conta o passado, estamos bastante melhor e podemos dizer, até certo ponto, que somos um País inclusivo. Mas ainda há muita gente dentro do armário e isso tem a ver com a discriminação que, claramente, ainda existe e que provoca medo, quer seja por questões familiares, ou por problemas que, eventualmente, possam ter no trabalho, na escola…ainda há muita gente que não se consegue assumir plenamente. O que deveria interessar, que é quem é que uma pessoa ama, não é ainda assim tão linear.

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Passaram poucos dias do massacre em Orlando. Os acontecimentos deixaram-te com algum tipo de receio?

Não vou dizer que não existe um medo. O mês de Junho é o mês do Orgulho em todo o Mundo e a ideia de que numa altura destas tenha acontecido o que aconteceu provocou um grande impacto. Temos, no entanto, de ter a noção de que os ataques à comunidade estão sempre a acontecer. Todos os dias. Há bullying, há discriminação, há suicídios devido a uma série de factores inerentes à condição de pertencer à comunidade, há pessoas a serem mortas e filhos a serem postos fora de casa pelos pais. Isto são "massacres" diários.

E é por causa de tudo isto que não podemos parar. É claro que eu não quero morrer, mas se todos nós agora fugíssemos para casa e não estivéssemos aqui, o que isso significava para as próximas gerações? Seria esse o melhor exemplo para as pessoas ainda mais jovens que eu? Não, era quase um retrocesso civilizacional.

JOÃO CARLOS, 37

VICE: Consideras Portugal um País verdadeiramente inclusivo?

João Carlos: (Pausa) Portugal tem momentos inclusivos e tem momentos muito duros. Seja qual for a minoria de que estamos a falar. Felizmente há o efeito pedagógico da lei e nós temos um conjunto de legisladores atentos que estão a tentar, em conjunto com muitas organizações, fazer com que a lei seja o mais justa e igualitária possível e apagar discriminações que havia e que ainda há. Ou seja, por um lado, sim, existe uma acção pedagógica notória na lei. Agora, esta pedagogia demora tempo a chegar e a permear todas as gerações, todas as casa, todas as aldeias, todas as ruas, todas as escolas, todos os locais de trabalho, todas as casernas…enfim…

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É necessário que haja mais gente de fora da comunidade a participar em marchas como esta?

Mas há imensa gente de fora da comunidade a participar. Cada vez mais. As pessoas sabem que é uma Marcha pela noção de equilíbrio, pela possibilidade as pessoas prosperarem numa vivência sã, de expressão afectiva, como seres humanos inteiros. Há cada vez mais gente que se identifica com estes valores. Como dizia o poeta: "Aquele que não se levanta por coisa nenhuma, é derrotado por qualquer coisa". Essa noção social existe e é cada vez maior, embora contrastando também com coisas que nos deixam muito tristes e magoados, como é a falta de reconhecimento de direitos, porque a igualdade é que é um direito, não é a diferença.

Passaram poucos dias do massacre em Orlando. Os acontecimentos deixaram-te com algum tipo de receio?

Pela reacção de várias pessoas com quem me encontrei durante esta semana,o que se sente mesmo é tristeza. Uma tristeza profunda. Este tipo de crimes são "crimes-mensagem". Não são contra uma determinada pessoa em particular, mas contra o grupo que todas aquelas pessoas representam. Faz-se daquelas vitímas específicas, um exemplo para todas as outras vítimas que se quer atingir, mas que por alguma razão não se consegue. Claro que isto tem impacto em nós. Todos os de nós que têm antecendentes de sofrimento com a violência homofóbica se revêem nisto e recordam o que lhes aconteceu e isso aviva as feridas. E as feridas são diárias, são cumulativas e para as gerações mais velhas são o reavivar de historiais que todos temos. Histórias de bullying, de espancamentos… a comunidade LGBT tem sido sempre um alvo.

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E no caso de Orlando é um alvo muito específico, porque ninguém faz 200 quilómetros para matar gente num clube gay para protestar contra a política internacional capitalista, ou o que quer que seja. É um ataque directo e quando me querem retirar a noção de dor, questionando o porquê de colocarmos o ênfase no ataque à comunidade e não "apenas classificá-lo" com um acto terrorista, eu pergunto: que mais nos querem retirar? Diminuir a dor de alguém também é violência e como não tem a frontalidade da agressão física, vai passando e este "vai passando" tem que ser parado.

ALEXANDRA, 29

VICE: Consideras Portugal um País verdadeiramente inclusivo?

Alexandra: Há duas formas de olhar para isso. Se olharmos para as leis que temos e o que foi conseguido ao longo dos tempos - não apenas ao nível da comunidade LGBT -, podemos pensar que sim, que somos um País inclusivo. Por outro lado, socialmente não somos um País inclusivo. Estamos muito habituados a tapar o sol com a peneira e a dizer que está tudo resolvido, mas não está. E é aí que temos dificuldades em fazer a mudança, mesmo no que diz respeito às gerações mais jovens.

É necessário que haja mais gente de fora da comunidade a participar em iniciativas como esta?

Eu acho que há gente de fora da comunidade a participar, mas também não sei até que ponto é que esta Marcha em particular não é mesmo o sítio onde o que tem de haver é ainda mais gente da comunidade a participar. Tantas vezes andamos na rua e sentimos medo, que não sei se esta não é aquela oportunidade de quem está em casa e tem esse medo e não participa nas coisas por causa disso, de finalmente o poder fazer e de dizerem "nunca fiz nada, nunca fui a nada, hoje é dia de Marcha e eu vou".

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Ainda há muitos armários fechados?

Há tantos. E de várias formas e feitios. Acho que nos enganamos quando pensamos que não.

Passaram poucos dias do massacre em Orlando. Os acontecimentos deixaram-te com algum tipo de receio?

Afectou-me sem dúvida e afectou a comunidade. Quando há marchas de orgulho, o orgulho aqui significa, precisamente, viver sem medo, porque somos uma minoria e somos muitas vezes vítimas de preconceito. Significa não tenho medo de ser visível, não tenho medo de ser eu mesma e Orlando é um bocado como se fosse uma janela para a realidade do nosso dia-a-dia. Obviamente numa escala incomparavelmente maior, mas todos os dias sofremos agressões e outros tipos de violência, há pessoas que são expulsas de casa, ou despedidas dos empregos por serem LGBT. Por isso, com mais ou menos medo, temos de estar aqui para dizermos que existimos, que estamos aqui.

BRUNO, 20

VICE: Consideras Portugal um País verdadeiramente inclusivo?

Bruno: Não. Ainda estamos a lutar por direitos e mesmo os que já conseguimos na lei ainda não se reflectem na sociedade no nosso dia-a-dia.

Sentes isso na pele?

Sinto, claro. Todos os dias. É óbvio que está melhor, mesmo comparando com a minha adolescência - que não foi assim há tanto tempo - mas ainda assim, mesmo eu não consigo exprimir-me da maneira que gostava.

Passaram poucos dias do massacre em Orlando. Os acontecimentos deixaram-te com algum tipo de receio?

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Tenho algum receio. Claro que não é tão intenso, porque vivemos em Portugal e a violência deste género aparentemente não existe, mas ainda há pouco quando vinha para aqui fui ameaçado na rua por pessoas que disseram que me iam bater… portanto, há sempre algum medo.

ÁGATA, 26 E RITA, 22

VICE: Consideras Portugal um País verdadeiramente inclusivo?

Ágata: Está a ficar cada vez mais. As coisas vão melhorando.

Rita: Aos poucos. Julgo que terá também a ver com as novas gerações.

Passaram poucos dias do massacre em Orlando. Os acontecimentos deixaram-te com algum tipo de receio?

Ágata: Algum medo sim, mas é também por isso que temos de estar aqui.

Rita: Foi o que eu disse à minha mãe, precisamente. Temos de enfrentar o medo com a presença.

Vê abaixo mais fotos da Marcha LGBT Lisboa 2016.


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