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Desporto

Soprei no apito dourado

De Gondomar ao Paganini à procura do apito dourado.

Corria o ano de 2004 quando despoletou um dos casos mais mediáticos em Portugal — o “Apito Dourado”. Na altura, andava no liceu e estava demasiado ocupado a ser rejeitado para querer saber desses assuntos. Se me dissessem que, passados sete anos, iria andar à procura do objecto que deu origem a isso tudo, não acreditaria como devem calcular. Muito menos que, pelo meio, iria dar a um café chamado Eléctrico, a casa de um dos engenheiros do apito original e ao clube de strip Paganini.

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Tudo começou, um dia à tarde, com a chamada do meu editor: “David, sabemos de um tipo em Gondomar que esteve por dentro da origem do apito dourado”, dizia-me, enquanto eu pensava o que haveria ainda por contar sobre o escândalo desportivo mais falado de sempre na imprensa nacional. Eu não sei muito de futebol, o que sei é que, se tivesse ficado alguma coisa por dizer, não era eu, com o meu limitado conhecimento sobre o assunto, que iria descobrir mais alguma coisa. “Ei, nunca se sabe…”, pensei, e afinal de contas era uma oportunidade para fazer algo à la Hunter S. Thompson: desporto, condutas duvidosas, cenários manhosos… possivelmente. Tinha todos os ingredientes mas melhor, porque em vez do Ralph Steadman a fazer desenhos, ia com uma miúda gira a tirar fotografias. Combinei com a Maria às seis da tarde na redacção. Quando entrei no carro e bati a porta pensei que, se calhar, não deveria estar a fazer aquilo. Lembrei-me de uma amiga jornalista que foi agredida pelos Super Dragões há uns anos, já não sei bem porquê, e pensei imediatamente: “Este pessoal da bola não bate bem e aqui vou eu abrir uma ferida que ainda não sarou, ‘tou lixado…” “Então quem é este tipo misterioso de Gondomar?”, perguntei à Maria sem deixar transparecer a hesitação. “Chama-se César. Conheci-o há uns anos quando fiz uma caderneta de cromos para o clube de futebol de Gondomar, do qual ele fazia parte. Na altura, contou-me algumas histórias sobre o apito dourado e acho que até tinha um.” “E acho que até tinha um” ressoou na minha cabeça, como se alguém tivesse tilintado uma peça de joalharia ao meu ouvido. A partir daqui, esta viagem tornar-se-ia uma cruzada pelos bastidores do futebol, em busca do apito dourado. “Ele tinha um café em Gondomar. Já passaram alguns anos desde a última vez que o vi, mas podemos sempre tentar…”, continuou enquanto ia ao volante. Finalmente, chegámos: “É aqui!”, acordou-me a Maria. “No eléctrico?”, perguntei antes de reparar que aquele genuíno eléctrico do Porto estava exactamente no pátio do café. “Sim.” “Ah, ok, no Eléctrico…” Entrámos e a Maria explicou quem éramos e perguntou se o tal César ainda era o proprietário do café. Disseram-nos que ele devia estar a chegar, por isso sentámo-nos e mandámos vir finos e amendoins. Os 0,8 gramas mais pesados do futebol nacional. Passados uns minutos ouvi uma voz atrás de mim: “Olha quem está aqui!”, e, pela reacção da Maria, confirmei quem era. “Olá César, já não tinha a certeza se ainda se lembraria de mim!” Um tipo forte e sorridente apertou-me a mão enquanto a Maria me apresentou. Sentámo-nos. “Então César, como é que começou isto do apito dourado?”, perguntei. “Bem, isto começou de forma bastante inocente, para dizer a verdade. Na altura eu era chefe de departamento de juvenis e seniores do Gondomar, e decidimos fazer uns apitos em ouro para oferecer a equipas de arbitragem ou a dirigentes de outros clubes, com quem tínhamos boas relações. Na verdade, começou como uma miniatura de bola de futebol em ouro, mas para uma equipa de arbitragem não fazia muito sentido. Lembrei-me de um apito e assim era perfeito. A partir daí, toda a gente queria ter um.” “E isto era brincadeira para quanto?”, questionei. “Isto também eram miniaturas… uns oitocentos escudos na altura, em 1983 ou 84, já não me recordo. Com oitocentos escudos não se comprava ninguém. Era apenas uma cortesia que os anfitriões faziam, e toda a gente fazia isso. Se fôssemos jogar a Lousada davam-nos louças. Como Gondomar era a terra dos ourives, dávamos apitos em ouro”, continuou o César, ao mesmo tempo que tirava um português do maço. “Claro que, depois, certas equipas e dirigentes começaram a oferecer mais do que um apito dourado e, assim, tornou-se um símbolo do que já se sabe. Dinheiro, mulheres… o que veio nos jornais.” E continuámos a falar da bola, de histórias caricatas, como uma equipa de Lamego que tinha adeptos que partiam garrafas para ferir os jogadores da equipa adversária, e que tinha um presidente ex-GNR que ia ver os jogos sempre armado — o tipo de coisa que só acontece na Distrital mas que não passa na Liga dos Últimos. A Maria, que devia estar um bocado farta da conversa de gajo que tinha tomado conta da mesa durante a última meia hora, fez a pergunta pela qual tínhamos ido lá em primeiro lugar: “O César também tem um apito, não tem?” “Já não, perdi-o há uns anos.” Mas antes que tivéssemos tempo para desanimar, disse que nos podia levar até alguém que, provavelmente, ainda o tinha. Nem mais nem menos do que o homem que fez o primeiro molde do apito dourado original. “Já não vejo o Laurindo há mais de dez anos, mas se há alguém que ainda o tem, é ele.” Metemo-nos no carro do César e arrancámos para a próxima paragem. Pelo caminho, contou-nos a história do Laurindo, ex-presidente do Futebol Clube de Gondomar e antigo professor de trabalhos manuais, que tinha sofrido um acidente com um tractor no Douro e que, pelos vistos, tinha ficado meio “avariado da cabeça”. Quando chegámos a casa do Laurindo, a mulher dele levou-nos até à cozinha onde encontrámos um homem na casa dos setenta, sentado à mesa a comer uma cebola com vinagre e sal, uma posta de bacalhau que desfiava com a mão e um copo de vinho a acompanhar. Uma cena saída do imaginário do Mario Puzzo — um autêntico Padrinho — e eu estava presente. “Olha quem é ele! Vieste ver os pavões?”, disse quando viu o César na cozinha. Sim, o Laurindo tem pavões no quintal e, quando alguém pergunta se querem ver os pavões que tem no quintal, não se diz que não. É, tipo, uma proposta que não se pode recusar. Fomos até lá fora ver as aves com o César e o suposto ourives, que se afastaram um pouco mais por um caminho de terra até a umas ameixoeiras. Decidi ficar para trás, afinal de contas, eles não falavam há dez anos — não havia lugar para um estranho naquela conversa. Momentos depois, começaram a aproximar-se de novo. Eu e a Maria admirávamos os pássaros exóticos. “Ó Laurindo, mas nós não viemos aqui ver os pavões. Estes meninos andam à procura daqueles apitinhos que fizemos. Lembras-te dos apitinhos? Ainda tens algum?”, explicou o César. “Então não lembro… Mas já não tenho nenhum”, respondeu o Laurindo, “os últimos que tinha roubaram-mos do bolso de um casaco. Toda a gente queria ter um.” E assim, voltámos à estaca zero. “Este apito é mais ilusório do que o Santo Graal…”, supunha eu, já a desesperar. O César mostrou-se tão surpreso quanto nós: “A sério?! Não tens nada mesmo? Nem na tua oficina?” “Não, mas podemos ir lá ver”, respondeu o Laurindo. A oficina ficava no rés-do-chão da casa, na parte de trás que dá para o quintal. Quando entrámos, atravessámos também um portal qualquer do tempo. Parecia algo do princípio do século passado ou medieval até. “Então foi aqui que o Sr. Laurindo fez o primeiro apito dourado?”, perguntei, ao admirar o espaço. “Não, eu nunca fiz nenhum apito. O que fiz foi encontrar uma maneira de os fazer”, respondeu o Laurindo, tornando tudo mais confuso. Afinal de contas, o César tinha dito que ele tinha ficado meio “avariado” depois do acidente. “O que aconteceu foi que, um dia, o César chegou aqui com um apito de arbitragem e perguntou-me se dava para fazer apitos iguais mas em ouro, para oferecer. Só que ficava muito caro — cinco contos de rei, na altura. Por isso, fiz as contas e vi que só se podia fazer apitos mais pequeninos, como berloques. Fiz os moldes para esses apitos, mas não fui eu que os fiz”, elucidou o Laurindo. “E os moldes, podemos ver?”, aproveitou a Maria. O Laurindo começou a abrir umas gavetas velhas da mesa de trabalho. Não vimos moldes nenhuns, mas vimos pedras preciosas, diamantes para ser preciso, mais de uma dúzia, todos juntos, tão pequenos que pareciam areia brilhante. Acho que nunca tinha visto diamantes de tão perto e, por alguma razão, pareceram mais genuínos do que em qualquer montra de joalharia. Qual era a probabilidade de ver diamantes numa oficina cheia de teias de aranha, numa casa meia rural? Só podiam ser verdadeiros, e este tipo tinha pavões em casa, por isso não duvidei.

Fazia-se tarde e o apito não estava ali. Fomos embora. “Afinal, não está tão avariado da cabeça como me disseram”, comentou o César no carro. Perguntámos-lhe se não se lembrava de mais ninguém que pudesse ter o maldito objecto. “Deixem-me pensar… o Pinto é capaz de ter.” Não, não é o Pinto da Costa, isso seria demasiado fácil (ou demasiado difícil?). “O Pinto é um ex-árbitro. Agora está à frente do Paganini no Porto. Podem encontrá-lo lá. Digam que vão da minha parte, que ele fala com vocês”, garantiu o César. Eu já delirava mais era com a ideia de entrar num clube de strip, avaliado com cinco estrelas no fórum GP. Despedimo-nos do César e entrámos no carro, de volta para o Porto, para a última paragem — o Paganini. Era ali que iríamos encontrar o berloque de ouro, entre mulheres semi-nuas a dançar. Não podia ter calhado melhor. Combinei com a Maria às onze e meia da noite na Rua da Constituição e, quando chegou a hora, lá estávamos nós a bater à porta. Um tipo grande abriu-a. “Boa noite, gostaríamos de falar com o Sr. Pinto, se fosse possível.” Fomos conduzidos até ao bar onde estava um homem careca de óculos. “Sr. Pinto? Boa noite, como está? Nós vimos da parte do César. Estamos a fazer uma reportagem sobre o apito dourado e ele disse que podíamos falar com o senhor”, atirei logo. “César?!”, perguntou surpreso. “Sim, o César, do Gondomar. Ele disse que o senhor era capaz de ter um”, continuei. “Ah, o César! Já sei. Mas não tenho. Perdi-o, já faz alguns anos. Sabe… já lá vai muito tempo.” E assim, começámos a sentir que nos estavam a tirar o tapete do chão, a mim e à Maria, exausta ao meu lado. Nesse momento, duvidei de todos com quem tínhamos falado. Provavelmente, ainda tinham o apito dourado, mas ninguém queria ser visto com ele. “Pessoal, esta merda não é o Senhor dos Anéis! É só um apito!”, julguei furioso. Enfim, não havia mais nada a fazer. Ainda por cima, fomos cedo demais, nem gajas nuas deu para ver. David, autor do texto, de apito dourado nos lábios. Mas a história ainda não tinha acabado. Uns dias mais tarde, a Maria telefonou-me: “David, não vais acreditar! Encontrei o apito!”, e de novo, com um telefonema, eis que tudo começava a rolar outra vez. “Mas como?”, perguntei. “Lembras-te do Laurindo dizer que só tinha feito os moldes? Bem, fui falar com ele e pelos vistos foi um Sr. Rodrigo que fez o resto.” Não há nada como ter uma cara linda para fazer os senhores falar, é isso e o álcool. De volta a Gondomar, será que era desta? Eu já só queria ver o apito, pegar nele e sentir que era real. Já não queria saber de onde veio, quem o comprou, quem o vendeu. “Deixem-me ver o apito dourado!”, gritei na minha cabeça. No carro perguntei à Maria o que sabia sobre o Sr. Rodrigo. “Sei que já tem alguma idade”, respondeu de mãos no volante, “o César e o Laurindo já nos tinham falado dele, lembras-te? Mas, pela idade, deduziram que já teria morrido. Mas, ao falar novamente com o Sr. Laurindo, decidi que valia a pena confirmar. Segui as indicações que ele me deu para a casa do Sr. Rodrigo e, pelo caminho, ainda dei boleia a uma senhora até a um pão quente. E bingo! Uns metros à frente, dei com a casa do homem. Está vivo, tem 95 anos e naquele momento estava a jogar cartas.” Nervos em franja, quando chegámos à sua casa, em Valbom. Tocámos à campainha e quem nos abriu a porta não tinha aspecto de ter 95 anos. “Olá, o Sr. Rodrigo está?”, perguntou a Maria. “O Sr. Rodrigo está a dormir”, respondeu o homem que, viemos a saber, era o neto por lei do Sr. Rodrigo. Deixou-nos entrar e, por várias vezes, sublinhou a sorte que tivemos em nos ter atendido. Explicámos quem éramos e contámos-lhe a nossa aventura, que deve ter soado a uma caça ao tesouro para adultos. “E por isso, viemos até aqui. Por acaso não tem um apito dourado?”, perguntámos ao Manuel, assim se chamava o homem. “Tenho”, a resposta ecoou na garagem, e percebemos que a nossa busca tinha chegado ao fim. “Podemos ver?”, perguntou a Maria. “Sim, vamos até aqui ao escritório.” Fomos até à sala ao lado onde o Manuel, também ourives de profissão, percebendo a nossa ânsia em ver o dito cujo, demorou-se a abrir a grande porta blindada de onde tirou uma caixa. Dentro da caixa estavam dezenas de berloques, pequenas peças em ouro, representações em miniatura de alguma coisa e, entre uma espiga e uma bolota, lá estava ele — o apito dourado pequenote. “Como é que uma coisa tão pequena fez tremer os maiores estádios do país?”, pensei. “Posso?”, perguntei ao Manuel enquanto pegava no objecto. Sublime, pesava oito décimas de grama, mostrou a balança em cima da mesa. Encostei-o aos lábios, soprei e rejubilámos com o som — era um verdadeiro apito dourado. Perfeitinho, feito com o rigor do detalhe, pelo qual o Sr. Rodrigo era conhecido. Tanto eu como a Maria decidimos que queríamos comprar um. Depois de todo este trabalho, nada melhor do que levar um apito como recordação. Se em 1983 custava 800 escudos, quanto é que custará agora? “60 euros”, respondeu. Ficámos os dois meios boquiabertos. “Foda-se, com esta economia? Nem pensar! Vamos embora, Maria!”