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Viagens

O Quim das Couves existe e agora somos amigos

Uma mina de legumes a céu-aberto.

No Porto, sob viadutos de auto-estradas, prédios e fábricas, escondem-se terrenos selvagens: uma área de farta vegetação é cortada pelos pilares das construções e pelas quedas de água de um riacho. Faria lembrar uma terra virgem não fosse o lixo e umas quantas seringas perdidas. Nos anos 50, a água, ainda limpa, fazia girar um moinho e produzia-se pão. Hoje, resta um estilo de vida e um homem. É nesta estranha confluência de modernices arquitectónicas que vive o Joaquim. No meio de jumentos, cavalos, cães, gatos e garnisés, o corpo de 69 anos trabalha a terra só quando lhe apetece e sempre com o barulho da água a silenciar o ruído dos carros, que passam velozmente metros acima da sua cabeça. Mergulhei num mundo entre parêntesis de cimento, um microcosmos comunitário onde se prova que alfaces, heroína, pencas e cachimbos podem conviver em paz. É entre o Bairro do Aleixo — famoso pelo tráfico de droga — e a Boavista que a cidade guarda um dos seus melhores segredos. Mato, água, subidas, descidas, caminhos com flores e vestígios tóxicos, guardados por minúsculos cães ferozes, esperam os curiosos. Passada esta primeira fase, vêem-se cabeças de espantalhos ao longe e depois uma pequena área cultivada. Este cenário natural parece agora o intruso no meio de tanto betume, o parasita que foi sobrevivendo nas sombras urbanas. É tão surpreendente ver aquela paisagem no meio da cidade, cercada por quedas de água, janelas e estradas, como será imaginar um arranha-céus plantado no meio das montanhas dos Pirenéus, passo o exagero. Desconhecia ao que vinha. Só ouvira falar vagamente do Joaquim e, quando o vi pela primeira vez, lavrava a terra com baba a cair-lhe pela boca. E foi a babar-se que me adiantou: “Bom dia. Pencas, tudo plantado por mim. Todos os dias cá venho, elas têm de nos ver todos os dias, senão…” Achando a sua ideia romântica, acrescentei: “Senão, morrem de tristeza.” O Joaquim não comentou. Passos mais à frente, depois de limpar a boca com a manga, atirou: “Você não sabia?” “Desconfiava”, disse eu a rir. “E aqui não se vende nada, é só para comer e dar aos amigos e a quem precisar.” O Joaquim tem a relação com a terra que só quem não a compra pode ter. Ou vice-versa. São como irmãos. Gostam-se, mas não se possuem. Mas paga o seu preço — "quatro contos" — para continuar a fazer parte daquela vista e repartir os proveitos por todos. Eu, por exemplo, posso lá ir buscar umas couves, umas alfaces, o que houver, dependendo da época. Não será bem chegar, ver e colher, mas basta pedir que ninguém se chateia. Uma mina de legumes a céu-aberto. O aspecto dos vegetais pode ter tanto de delicioso como de suspeito, pelos ares que respiram. Mas não faltam pretendentes. Uns vêm buscar meia dúzia, outros sacos maiores e há também quem venda. “Sempre é uma ajuda a quem está desempregado”, consolava Joaquim um amigo que não tinha gostado de ver a horta vazia. Por isso se quiserem legumes de graça, já sabem as coordenadas. Mas sejam moderados, isto dá para todos, e não falta também espaço para plantar, pelo que, se quiserem trazer uma enxada, são bem-vindos. No passado, havia ali também uma azenha, onde trabalhou décadas, herdando do pai a profissão de padeiro. Agora restam ruínas e umas pequenas casas fechadas em círculo, no meio de árvores, onde se acumula todo o tipo de bugigangas — bonecas, espelhos, televisores, rádios, terra, um cano a brotar água transformado em fonte — que servem de abrigo a gatos, cães, galinhas e a outros animais que apareçam. A liberdade é quem manda ali e o Joaquim obedece, feliz. Foram surgindo algumas pessoas que coabitam aquele terreno à medida que a nossa conversa ia avançando. É quase sempre assim, aquele grupo de amigos encontra-se ali para passear. Já faz parte da rotina. Percebe-se bem porquê: o cenário, quase virgem, está cheio de surpresas — diferentes odores, plantas, insectos e vegetação alta que cobre os limites, nunca se sabendo muito bem onde começa e acaba. Faltava conhecer os animais de porte maior, quando o Joaquim deu conta de que não sabia onde paravam. O cavalo e as burras tinham desaparecido. Os responsáveis poderiam ter sido os “meninos grandes que andam por aí à noite”, avançou. Estava a falar dos toxicodependentes, que consomem ali à noite. Alguns ficam debaixo do viaduto, onde há mais vestígios, mas também perto do riacho ou em algumas das ruínas se encontram “garrafas-cachimbo” ou pratas queimadas. Aquilo que durante o dia é uma horta, à noite transforma-se numa sala de chuto. Uma convivência sem conflitos, pelo menos até hoje. Se forem dependentes de substâncias tóxicas e precisarem de um local calmo para as consumirem, e o respeitarem, acho que também podem usar o espaço. E há de certeza muita mais gente a usufruir desta maravilha urbana. Se conseguirem, sejam limpos. “As burras, Quim?”, ouviu-se ao longe um amigo do Joaquim perguntar. Caminhámos em fila indiana em direcção a uma antiga capela — que são ruínas por detrás de mais ruínas — a primeira sugestão para o paradeiro das burras. Alguém comentou oportunamente que “os burros não rezam”, e que seria então pouco provável encontrá-los na sacristia. “Eu sou religioso só quando morre alguém — as minhas únicas visitas à igreja”, disse o Joaquim. Continuámos a procurar. Havia outro personagem marcante no nosso grupo, por ser homem de poucas falas, e estar associado a algumas histórias macabras, contadas pelos outros sempre que se ausentava. A enxada que pousava no ombro rasou muitas vezes a minha cabeça, e garanto que senti que algumas investidas não foram nada inocentes. O que acontece no ribeiro de Grijó, é para permanecer ali, era o que aquela atitude queria dizer. Outras figuras relevantes são as galinhas, muitas e histéricas como só elas sabem ser. Estão em abundância na fauna e têm matado a fome a algumas almas. Como disse o Neca: “Aqui, cabidelas quem as faz não somos nós. Meia volta desaparecem umas quantas galinhas.” Alguns gatos gordos que passeiam pela zona são também suspeitos. Até a mim me apeteceu apertar o pescoço a uma. A rebaldaria ali dentro é incontornável e a imaginação rica. Nunca se sabe muito bem quem fez o quê, como e quando o fez. Isso é assunto para Deus resolver. “Eu trato da terra. O dia seguinte não é comigo, é com o patrão lá em cima”, rematou Joaquim. Um santo dia, anos atrás, um burro chamado Giló caiu ao ribeiro. Uma tragédia que, afinal, não acabou em tragédia. Apesar da queda ao riacho numa época de cheias e de ter “surfado” até ao Rio Douro, onde estas águas desaguam, o jumento sobreviveu, como um herói. É ele quem merece as honras. Porém, foi para o Joaquim — que só assistiu ao salvamento pelos bombeiros — que os holofotes se viraram. Esta epopeia jumentina trouxe benefícios ao Joaquim e à sua “patroa”: viajaram de Alfa pela primeira vez, passaram um fim-de-semana em Lisboa, com hotel, táxi, restaurantes e uma visita ao novo estádio do Benfica, tudo pago por um canal de televisão, resume o seu sorriso troçador. O Giló foi vendido há uns tempos atrás. Bonança de uns, desespero de outros. Se já não bastasse às burras ficarem sem quem as cubra, agora têm de levar com um cavalo desesperado no cio, que não tendo por sua vez égua, desata a ferrar no lombo das bichas. O animal é lindo — burras, aproveitem. Corpo branco e crina bege, só lhe falta um corno na testa para confirmar o seu ar místico. Fomos dar com ele no outro lado do terreno, escondido atrás de uma casa. Enquanto ele e o Joaquim trocavam mimos, as burras estavam no lado exactamente oposto do terreno, juntas e com marcas de dentadura bem visíveis pelo corpo. Muitos animais juntos — num espaço confinado — podem originar comportamentos bizarros. A explicação sobre como apareceram os anfíbios talvez seja um pouco diferente do que me ensinaram na escola primária, e o mesmo se aplica à minha catequista e às suas histórias acerca da Arca de Noé. O património desta ilha é sobrevivente, preguiçoso. Troça do stress que o rodeia. Antes quebrar que dobrar é o que dizem, esganados pela confusão urbana, animais e plantas. Não vai demorar muito para que os prédios invadam e os expulsem dali. Entretanto, os homens que trabalham no campo lavram-no, porque sem ele iriam ser só mais umas cabeças, como as que passavam por cima de nós a conduzir os carros e a apitar. Mas fazem mais, mantêm firme um estilo de vida que protege um dos maiores patrimónios antropológicos nacionais: o Joaquim, português. Podia ser o que conheci ou outro qualquer. Refiro-me ao homem que vive nas aldeias e tem as mãos tortas da lavra. Uns mais faladores que outros, mas quase todos transparentes, latinos, tão perto o coração vive da boca. Têm uma resistência feroz aos instantâneos eclectismos culturais pós-modernistas, e não há moda que lhes pegue. Estão em perigo de extinção, bem mais do que as sardinhas, pelo que os portugueses devem estimá-los. Encontrados os animais e instalada a calma, a “quinta” reencontrou o ritmo normal. O barulho da água voltou a ouvir-se, as galinhas continuaram a correr, os mosquitos e o cheiro a estrume estavam novamente no ar. Tudo preparado também para que durante a noite os viciados tenham o seu espaço funcional. A pocilga espera por um porco que virá em breve. Enquanto não chega o hóspede, é um espelho grande com várias fotografias coladas quem lá mora. Não havia calendários de modelos nuas. Eram mais recortes de jornais dos anos 80 o que se via por ali. Uma é do Oceano, ex-jogador. “O homem já morreu, coitado”, disse o Joaquim. “Não o enterre, que o homem está vivo”, respondi. “Ah sim? Ok. ‘Tá a ver ali aquela nespereira? Quer subir para levar alguns magnórios?” Fotografia por Lara Jacinto